Pular para o conteúdo
Crenças podem afetar percepção da realidade
Tecnologia
crenças
podem
afetar
percepção
realidade
tecnologia

Crenças podem afetar percepção da realidade

Publicado em 5 de outubro de 2025 às 18:00

4 min de leitura

O texto abaixo foi publicado originalmente na Revista Questão de Ciência.

Lá por 2009 me deparei com a ideia de que o pensamento poderia moldar a realidade. O best-seller da vez era O Segredo, recheado de deturpações filosóficas e científicas a serviço do poder do pensamento positivo. Num documentário correlato chamado “Quem Somos Nós?” lembro-me de um sujeito que jurava nunca mais ter dificuldade em achar vaga de estacionamento desde que começou a “vibrar” positividade. Em sua boca, desejos eram convertidos em vagas via mecanismos quânticos improvisados. Faltava apenas perguntar se algum shopping havia notado o súbito desaparecimento de carros ou o surgimento de novas vagas em suas câmeras de segurança.

Em outro momento de um desses documentários, falavam sobre como os nativos da América do Sul não viram as caravelas chegando, pois não tinham uma palavra para designar aquela enorme embarcação. Foi por volta dessa época que também me deparei com o Pura Picaretagem, do Carlos Orsi e do Daniel Bezerra, um interessante antídoto contra essas lorotas quânticas de autoajuda.

Esse é o tipo de delírio comercializado pela indústria do otimismo, mas não é dele que quero tratar. A discussão realmente séria — respaldada por debates filosóficos e dados científicos — é a possibilidade de que estados mentais influenciem a percepção. Em outras palavras, que crenças, expectativas e até a linguagem possam infiltrar-se nos estágios mais básicos da visão, da audição, do tato.

Pode soar como mera curiosidade acadêmica, mas não é. Se nossos pensamentos podem alterar aquilo que percebemos, as consequências para a epistemologia — ou seja, para nossa capacidade de conhecer a realidade e agir com base nesse conhecimento — são profundas. Esse é o ponto de partida que nos levará às ilusões de ótica, talvez o campo mais instigante para investigar esse suposto vazamento entre cognição e percepção.

Medição objetiva

Imagine olhar para uma ilusão de ótica, como a clássica Müller-Lyer: duas linhas com setas nas pontas, que parecem ter comprimentos diferentes, mas na verdade são idênticas. Mesmo depois que você mede com uma régua e sabe que as linhas são iguais, seus olhos insistem em lhe dizer o contrário. Esse fenômeno foi usado por décadas como um dos melhores exemplos de que a percepção funciona como um módulo encapsulado — uma engrenagem cognitiva isolada que não compartilha suas informações com outros módulos, igualmente isolados.

Essa proposta foi defendida por Jerry Fodor na sua teoria da modularidade da mente (1983) e é um dos argumentos por trás das ilusões de ótica explicadas como consequências de mecanismos inatos da percepção visual. Para esse filósofo, alguns sistemas mentais — especialmente os perceptivos — operam de forma automática, rápida, inconsciente e, o mais importante, imunes ao que sabemos, acreditamos ou desejamos. Em outras palavras, a percepção não negocia com a cognição. Por isso, ilusões de ótica persistem mesmo diante do conhecimento racional que as desmente.

A visão modular

Para entender a força da proposta de Fodor, voltemos às ilusões. Se a percepção fosse penetrável, bastaria dizer a nós mesmos: “essas linhas são iguais” e pronto, o efeito sumiria. Mas não: continuamos a ver uma linha maior do que a outra. Esse tipo de persistência ilustra o que Fodor chamava de encapsulamento informacional. O módulo perceptivo só recebe inputs limitados (luz, som, toque) e os processa de acordo com suas próprias regras, sem acesso direto ao conhecimento do resto da mente.

Esse argumento foi reforçado por muitos exemplos. Pense no pôr do Sol: sabemos que a Terra gira em torno do Sol, mas ainda assim vemos o Sol se pondo. Ou no som da fala: você pode entender perfeitamente o que é dito, mas não consegue não ouvir uma frase falada no seu idioma como linguagem articulada. São indícios de que a percepção segue algoritmos automáticos e indiferentes à cognição consciente.

Essa perspectiva modular teve enorme influência. Ela garantia um certo “realismo perceptivo”: se os módulos são encapsulados, então a percepção nos dá uma janela relativamente confiável do mundo. O que vem depois — interpretação, inferência, crença — pode ser enviesado, mas a base perceptiva estaria segura.

Mas será que essa história está completa? E se o que vemos, ouvimos ou sentimos não fosse apenas produto de mecanismos encapsulados, mas também resultado de como pensamos, falamos e esperamos que o mundo seja? Isso alteraria tudo que sabemos sobre a relação entre percepção, teoria e realidade. Esse é o ponto de partida para o debate sobre a penetrabilidade cognitiva da percepção, uma das discussões mais quentes da psicologia e filosofia da mente nas últimas décadas.

O desafio

Fonte: Superinteressante

Leia também