
Cantigas medievais revelam história do “-ão” e “-ãe”, cuja pronúncia desafia estrangeiros
Publicado em 5 de setembro de 2025 às 16:00
3 min de leituraFonte: Superinteressante
O texto abaixo foi publicado originalmente no Jornal da Unesp.
A primeira gravação reconhecível de uma voz humana data de 1857, quando o inventor francês Léon-Scott de Martinville murmurou alguns compassos da canção tradicional Au Clair de Lune em uma engenhoca que batizou de fonoautógrafo. Antes disso, não há evidências diretas de como nossos antepassados pronunciavam as palavras.
Para lidar com essa lacuna, a linguística emprega um arsenal de métodos, alguns surpreendentes. Os latinistas, por exemplo, investigam até erros ortográficos nas pichações da Roma Antiga. Assim como a grafia “nois” revela a pronúncia real do pronome “nós”, uma inscrição nas ruínas de Pompeia em que se lê pagatus em vez de pacatus sugere que a consoante “c” do latim clássico já estava saindo como um “g” no latim vulgar, falado no dia a dia.
A linguista Gladis Massini-Cagliari, professora da Faculdade de Ciências e Letras (FCLAr) no campus da Unesp de Araraquara, é uma dessas arqueólogas do som. Ela e sua orientanda de pós-doutorado Débora Barreto analisaram 250 cantigas medievais compostas em galego-português entre os séculos 13 e 15, e a partir da divisão dos versos em sílabas poéticas, concluíram que a pronúncia do “-ão” e de outros ditongos nasais era diferente na época do monarca D. Afonso X. Esses encontros vocálicos costumavam ser hiatos, com duas sílabas em vez de uma.
“Quem aprende português brasileiro como língua estrangeira tem dificuldade especificamente com esses ditongos”, explica Massini-Cagliari. “Uma pesquisa como essa pode trazer subsídio para o ensino de português na medida em que, ao elucidar como isso se deu historicamente, começamos a trazer luz sobre como esse conteúdo poderia ser trabalhado.”
Sobre hiatos e ditongos
No português brasileiro atual, palavras como “não” e “cão” saem em uma só sílaba — o que equivale, grosso modo, a expirar uma única vez. Ponha a palma da mão na frente dos lábios e diga “mão” em voz alta: você sentirá apenas uma lufada de ar.
A maioria das sílabas tem só uma vogal, mesmo. Quando há duas, temos um ditongo; se forem três, trata-se de um tritongo. Em ditongos e tritongos, apenas uma das vogais representa um som efetivamente vocálico. As demais são consideradas semivogais e não saem com tanto destaque na fala (note que, na prática, dizemos algo muito mais parecido com “mãum”, ainda que haja uma letra “o” na grafia).
No galego-português medieval, porém, o padrão era pronunciar essas palavras como se possuíssem duas sílabas: “mã-o”, “nã-o” ou “cã-o”. A vogal “o” saía mais redonda, com clareza — em uma segunda lufada de ar, diferente da usada para pronunciar o “ã” anasalado. Quando duas vogais são vizinhas em uma palavra, mas pertencem a sílabas diferentes, temos um hiato.
Já se sabe há algumas décadas que ditongos como “-ão” e “-ãe” costumavam ser hiatos, mas o trabalho de Massini-Cagliari e Barreto inova em encarar a questão da perspectiva da chamada fonologia não linear. Essa abordagem, ao contrário de outras mais antigas na mesma área, leva em consideração a prosódia da língua — ou seja, entonação, ritmo, acentuação e as demais variações que dão vida à fala.
No caso específico deste estudo, o pulo do gato está na métrica das cantigas. Muitas delas têm uma construção regular, em que há conjuntos de versos com um número fixo de sílabas. E essa rigidez impõe restrições às palavras que se pode encaixar em cada verso.
Um exemplo com um trecho bem conhecido de letra de música pode tornar as coisas mais claras. Pensemos em Anunciação, de Alceu Valença, que traz o verso “Na bruma leve das paixões que vêm de dentro”. Se trocarmos “paixões” (que tem duas sílabas, “pai-xões”) por “amores” (que tem três, “a-mo-res”), é fácil perceber que não dá certo: fica faltando uma nota na melodia, correspondente à sílaba extra.
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*Ella Kellner é doutoranda em Ciências Biológicas na Universidade da Carolina do Norte – Charlotte. O texto a seguir é do site The Conversation.
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